Para aqueles que não adquiriram o livro literário: História de professores e alunos - selecionei seis dos oito contos que fazem parte da coletanea e os posto aqui. Os que não consegui foram: "Castigo" - de Sérgio Porto e "O filho da iniquidade" de Leonardo Arroio.
Boa leitura 6º ano !
COLETÂNEA
DE CONTOS – HISTÓRIAS DE PROFESSORES E ALUNOS .
Primeiras
leituras
Paulo
Mendes Campos
A primeira sentença cujo segredo
consegui decifrar até o fim dava a mim
uma
importância que a psicanálise explica: "A bola é de Paulo". Estava
escrito
debaixo
do cartão colorido, na parede do primeiro ano primário do Grupo Barão do Rio
Branco. Naquele tempo, o trabalho maior da professora era fazer com que
olhássemos para a parte inferior do cartão, onde estavam as letras misteriosas,
e não para cima, onde se estampava a figura do menino de calção azul e do
cachorrinho correndo atrás da bola, vendo-se mais longe uma casa rodeada de
árvores e de cuja chaminé saía uma fumacinha feliz. Aprender é uma mutilação.
Só no quarto ano trocamos os livros ilustrados
por um volume mais grosso, sem enfeites: era a antologia de Olavo Bilac e
Manuel Bonfim. Já a essa altura, sem contar as silabadas, líamos correntemente.
Mistério era descobrir por que motivo tanta gente havia escrito tanta coisa sem
graça. Logo na primeira página, embirrei com o tal de Machado de Assis. Aquele
lobriguei luz por baixo da porta me aborreceu. Lobriguei lembrava lombriga;
lombriga lembrava vermífugo... Não topei Machado de Assis, a não ser aquele
diabo velho, sentado entre dois sacos de moedas.
No
exame de admissão, tive a sorte de ler e analisar gramaticalmente um trecho de
Coelho Neto que sabia de cor: "Selva augusta, de velhos troncos intactos, jamais
ferida pelo gume dos ferros...".Veio depois o ginásio, no qual considerava
o florilégio um livro à parte, encapado no papel mais bonito, para
contrabalançar o volume de matemática de Jácomo Stavale. Eram as flores que
enfeitavam as horas de estudo, compridas e desertas Com o tempo, Machado de
Assis foi melhorando de estilo e de
idéias. Vez por outra, no entanto, dava para escrever frases intransponíveis
como esta: "O destino é o seu próprio contra-regra". Durante muitos
anos, todas as vezes que deixava de entender uma situação, repetia comigo a
fórmula incompreensível: "O destino é o seu próprio contra-regra"!
Duro era encontrar motivos que justificassem nossa admiração por Rui Barbosa, o
homem mais inteligente do mundo. Bonito mesmo era a última corrida de touros em
Salvaterra, que não é de Alexandre Herculano, como lembram os ingratos, mas de Rebelo
da Silva. Bonito era o sertanejo, antes de tudo, um forte. Bonito era o suave milagre
("longos são os caminhos da Galiléia e curta a piedade dos homens").
Quase
tão bonito era o cerco de Leyde, com aquela dúvida atroz, que permaneceu até
hoje, de saber se o mar era o único túmulo digno de um almirante bátavo ou batavo.
Bonito era a virgem dos lábios de mel. Bonito foi o descobrimento de O coração
de d'Amicis. Bonito foi quando achei na antologia de Carvalho Mesquita uma
poesia esquisita, a história de uma boneca de olhos de conta cheinha de lã, que
rolou na sarjeta e foi levada pelo homem do lixo, coberta de lama, nuinha, como
quis Nosso Senhor; Jorge de Lima foi o meu primeiro frisson nouveau. Feio foi o
que veio depois. A vida não é antológica, não tem gramática, não tem adjetivos
bonitos, não tem pontuação. Foi o que aprendi um século mais tarde em um livro
besta.
Na
reunião de pais só havia mães. Eu me sentiria constrangido em meio a tanta
mulher, por mais simpáticas me parecessem, e acabaria nem entrando - se não
pudesse logo distinguir, espalhadas no auditório, duas ou três presenças
masculinas que partilhariam de meu ressabiado zelo paterno.
Sentei-me numa das últimas filas, para
não causar espécie à seleta assembléia de progenitoras. Uma delas fazia tricô,
e várias conversavam, já confraternizadas de outras reuniões. O Padre-Diretor
tomou assento à mesa, cercado de professoras, e deu início à sessão.
Eu
viera buscar Pedro Domingos para levá-lo ao médico, mas desta vez cabia-me
também participar antes da reunião. Afinal de contas andava mesmo precisando de
verificar pessoalmente a quantas o menino andava.
O.
Padre-Diretor fazia considerações gerais sobre o uniforme de gala a ser
adotado. A gravatinha é azul? perguntou uma das mães. Meia três - quartos? -
perguntou outra. E o emblema no bolsinho? - perguntou uma terceira. Outra
ainda, à minha frente, quis saber se tinha pesponto - mas sua pergunta não
chegou a ser ouvida.
Invejei-lhes
a desenvoltura. Tive vontade de perguntar também alguma coisa, para tornar mais
efetivo meu interesse de pai - mas temi aquelas mães todas voltando a cabeça,
curiosas e surpreendidas, ante uma destoante voz de homem, meio gaguejante
talvez de insegurança. Poderia também não ser ouvido - e se isso me acontecesse
eu sumiria na cadeira. Além do mais, não me ocorria nada de mais prático para
perguntar senão o que vinha a ser pesponto.
Acabei
concluindo que tanta perguntação quebrava um pouco a solene compostura que
devíamos manter, como responsáveis pelo destino de nossos filhos. E
dispensei-me de intervir, passando a ouvir a explanação do Padre-Diretor:
–Chegamos
agora ao ponto que interessa: o quinto ano. Depois de cuidadosa seleção, foi
dividido em três turmas - a turma 14, dos mais adiantados; a turma 13, dos
regulares; e a turma 12, dos atrasados, relapsos, irrequietos, indisciplinados.
Os da 13 já não são lá essas coisas, mas os da 12 posso assegurar que dificilmente
irão para frente, não querem nada com estudo.
Fiquei
atento: em qual delas estaria o menino? Pensei que o Diretor ia ler a lista de
cada turma - o meu certamente na 14. Não leu, talvez por consideração para com
as mães que tinham filhos na 12. Várias, que já sabiam disso, puseram-se a
falar ao mesmo tempo: não era culpa delas; levavam muito dever para casa, não
se habituavam com o semi-internato. Uma - a do tricô, se não me engano - chegou
mesmo a se queixar do ensino dirigido, que a seu ver não estava dando
resultado. Outra disse que tinha três filhos, faziam provas no mesmo dia, como
prepará-los de uma só vez? O Padre-Diretor sacudiu a cabeça, sorrindo com
simpatia – não posso nem ao menos lastimar que a senhora tenha tanto filho. E
voltou a falar nos relapsos, um caso muito sério. Não vai esse Padre dizer que
meu filho está entre eles, pensei. Irrequieto, indisciplinado. Ah, mas ele
havia de ver comigo: entre os piores!
E por
que não? Quietinho, muito bem mandado, filhinho do papai, maria-vai-com-as-outras
ele não era mesmo não. Desafiei o auditório, acendendo um cigarro: ninguém
tinha nada com isso. Criança ainda, na idade mesmo de brincar e não levar as
coisas tão a sério. O curioso é que não me parecesse assim tão vadio - jogava
futebol na rua, assistia à televisão, brincava de bandido, mas na hora de
estudar o rapazinho estudava, então eu não via? Quem sabe se procurasse
ajudá-lo, dar uma mãozinha. . Mas essas coisas que ele andava estudando eu já
não sabia de cor, tinha de aprender tudo de novo. Outro dia, por exemplo, me
embatucou perguntando se eu sabia como se chamam os que nascem na Nova Guiné.
Ninguém sabe isso, meu filho, respondi gravemente. Ah, não sabe? Pois ele
sabia: guinéu! Não acreditei, fui olhar no dicionário para ver se era mesmo. Era.
Talvez estivesse na turma 13, bem que sabia lá uma coisa ou outra, o danadinho.
Agora o
Diretor falava na comida que serviam ao almoço. Da melhor qualidade, mas havia
um problema os meninos se recusavam a comer verdura, ele fazia questão que
comessem, para manter dieta adequada. No entanto, algumas mães não colaboravam.
Mandavam bilhetinhos pedindo que não dessem verdura aos filhos.
Eis
algo que eu jamais soube explicar: por que menino não gosta de verdura? Quando
menino eu também não gostava.
Pedem às mães que mandem bilhetinhos e
não é só isso: usam qualquer recurso para não comer verdura. Hoje mesmo me
apareceu um com um bilhete da mãe dizendo: não obrigar meu filho a comer
verdura. Só que estava escrito com a letra do próprio menino.
Chegada
era a hora de levá-lo ao médico - uma professora amiga foi buscá-lo para mim.
– Meu
filho - perguntei, ansioso, assim que saímos:
– Em
que turma você está? Na 12 ou na 13?
– Na 14
- ele respondeu, distraído. Respirei com
alívio:
e nem podia ser de outra maneira, não era isso mesmo?
– Fico
satisfeito de saber - comentei apenas.
Ele não
perdeu tempo:
– Então
eu queria te pedir um favor – aproveitou logo – que você mandasse ao
Padre-Diretor um bilhete dizendo que eu não posso comer verdura.
A
Vitória da Infância - Fernando Sabino
O
aluno relapso
Por
Ledo Ivo
__________________________________
Eu era o primeiro da aula; ele, o último.
Cumulado pelos elogios dos professores e o orgulho familiar,
eu invejava, do fundo do coração, o colega turbulento sentado emblematicamente
no último banco.
Ele fumava nos recreios, desafiando o olhar suspeitoso
dos vigilantes (e, entre duas tragadas enérgicas, proclamava atrevidamente a
inexistência de Deus), envolvia-se em episódios truculentos, vangloriava-se de
proezas sexuais nem sempre ortodoxas. Seu rendimento escolar era praticamente
nulo, e os professores, irmãos maristas, submetiam-no a continuados exercícios
de humilhação. Mas eu o invejava; ele significava, para mim, a aventura e a
transgressão.
Uma tarde de domingo, o acaso nos fez caminhar juntos pelas
ruas da cidade. Não lembro o que conversamos. Do longo passeio, que só terminou
ao sol-posto, ficou apenas a recordação de que ele me ofereceu um cigarro, por
mim recusado.
O encontro inesperado repercutiu na mesa familiar e
chegou aos ouvidos dos irmãos maristas, pela boca de alguns piedosos delatores.
Fui advertido de que deveria evitar a companhia indigna, licenciosamente
aparelhada para desviar-me dos estudos e do bom caminho.
Da avalancha de notas más que lhe juncou a trajetória
escolar, resultou a sua reprovação. No fim do ano, perdi-o de vista.
Quarenta anos depois, numa viagem a Maceió, voltei a encontrar
o aluno relapso. Ele pertencia à nobre linhagem dos alagoanos que, amando
a terra natal como as cobras amam seus ninhos de pedra, não
emigram. Era professor de Direito e desembargador, rico e respeitado, de
tendências políticas cerradamente conservadoras ou mesmo autoritárias.
Considerava a religião um freio indispensável para sustar os desatinos humanos,
e entendia que só o pulso forte das instituições militares tinha o poder de
conjurar a vocação deletéria da sociedade civil e evitar a anarquia nacional.
O desenho final não correspondera ao rascunho da adolescência.
Nem sequer fumava, como se os cigarros furtivos do tempo de colégio tivessem
sido incluídos na sua lista de condenações e olvidos. Vivre avilit - a
frase de Henri de Régnier ressoou na minha memória, no instante em que o vi
passar, severo e compassado, rumo ao Tribunal de Justiça. O Rimbaud sem gênio
se convertera num intolerante julgador dos outros homens.
A vida rouba os nossos sonhos, mas há algo que a grande ladra não consegue
levar. A deserção formidável fizera de mim o herdeiro do aluno relapso. O
sentimento de aventura e transgressão, de que ele se despojara em sua
metamorfose espiritual, passara a ser meu.
Eu desmentira os vaticínios que rodeavam a minha austera
reputação de primeiro da aula, tomando-me um poeta, e era agora, na idade
madura, o aluno relapso que secretamente desejara ser na adolescência.
Aula
de Inglês
Rubem
Braga
— Is this an elephant?
Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar
levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou
para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave
problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me
apresentava.
Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir
às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um
elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em
conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um
elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo
nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas
patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o
pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em
um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.
Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse
convincentemente:
— No, it's not!
Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia
deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:
— Is it a book?
Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros,
conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira
vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou
cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo
que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não
parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:
— No, it's not!
Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos.
Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor
questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.
— Is it a handkerchief?
Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o
que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não.
Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor
sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso
ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi
impávido:
— No, it's not!
Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que
aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.
Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi
precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de
insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das
outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes
dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra
decisiva.
— Is it an ash-tray?
Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é
um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o
objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e
um ash-tray. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13
centímetros de comprimento.
As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia
reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central,
uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de
cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito
de fósforos já riscado. Respondi:
— Yes!
O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente
iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um
largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela
meditação triste e inquieta. Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde
impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava,
muito excitada:
— Very well! Very well!
Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão
com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha
e muito orgulho.
Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo
firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive
mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa
conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu
tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:
-- It's not an ash-tray!
E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois
deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser
versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
Maio, 1945
CONTO
DE ESCOLA
Machado
de Assis.
A escola era na Rua do
Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia - uma
segunda-feira, do mês de maio - deixei-me estar alguns instantes na Rua da
Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e
o Campo de Sant'Ana, que não era então esse parque atual, construção de
gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de
lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De
repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai
a razão.
Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o
pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As
sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de
Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e
tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para
me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao
balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para
o colégio. Não era um menino de virtudes.
Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo;
ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do
costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada,
calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha
perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta
de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela
sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a
sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.
- Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do
mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda.
Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta
ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o
cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida,
cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e
retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.
- O que é que você quer?
- Logo, respondeu ele com voz trêmula.
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da
escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um
escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho
outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e
músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de
todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação
sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a
mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre,
dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa,
a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre
estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas
expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também,
entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia
por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos
vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do
bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da
escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de
papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa
soberba. E eu na
escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos
joelhos.
- Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
- Não diga isso, murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria
pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo,
e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.
- Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.
- Que é?
- Você...
- Você quê?
Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o
Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa
circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a
arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser
uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma
coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos,
era mais velho que nós.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe
baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem
de mim. Ou então, de tarde...
- De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.
- Então agora...
- Papai está olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o
muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos
finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as
folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as idéias e as
paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande
a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude
averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E
essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco
olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força
do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões
políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele
dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os
olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais,
e lia a valer.
No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mão no bolso das
calças e olhou para mim.
- Sabe o que tenho aqui?
- Não.
- Uma pratinha que mamãe me deu.
- Hoje?
- Não, no outro dia, quando fiz anos...
- Pratinha de verdade?
- De verdade.
Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei,
cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal
moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar
pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava
caçoando, mas ele jurou que não.
- Mas então você fica sem ela?
- Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa
caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a
mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que
queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me
daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira
reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando
a pratinha nos joelhos...
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes
própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra
mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos
termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma
lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem
poder dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo
aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do
pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de
outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a
minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, - e pode ser mesmo
que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, - parece que tal foi a causa da
proposta. O pobre-diabo contava com o favor, - mas queria assegurar-lhe a
eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como
relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista,
como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para
mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio,
grosso, azinhavrado...
Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que
continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. - Ande,
tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como
se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E
ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com
indignação...
- Tome, tome...
Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo
que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí
a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e - tanto se ilude a vontade! - não lhe vi
mais nada. Então cobrei ânimo.
- Dê cá...
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças,
com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna.
Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o
fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de
papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia
um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que
ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um
riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para
ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se
no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a
testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.
- Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
- Diga-me isto só, murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso,
lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois,
tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso,
dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em
brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras
vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por
artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas
pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno
papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele.
Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no
bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem;
guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me
não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo
tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.
- Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.
Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o
mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em
pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.
- Venha cá! bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de
olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais
lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do
mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.
- Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disse-me o
Policarpo.
- Eu...
- Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.
Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo
bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso,
vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado,
bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos
uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar
uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser
castigados. Aqui pegou da palmatória.
- Perdão, seu mestre... solucei eu.
- Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!
- Mas, seu mestre...
- Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por
cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e
inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada,
dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos
sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos
tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava:
Porcalhões! tratantes! faltos de brio!
Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os
olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do
mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria
igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para
ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos,
tão certo como três e dois serem cinco.
Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a
cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com
medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o
nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade,
por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?
- Tu me pagas! tão duro como osso! dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria
brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga
São Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente
escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras
casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde
faltou à escola.
Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a
minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando
ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a
moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e
a apanhara, sem medo nem escrúpulos...
De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa.
O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar
as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e
a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o
passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei
tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as,
fugia aos encontros, ao lixo da rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente,
rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido,
igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram
andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já
lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro
lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio
que cantarolando alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei
os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa.
Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem
ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e
Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da
delação; mas o diabo do tambor...
VOLTA
ÀS AULAS (UM RETORNO CADA VEZ MAIS CARO)
Carlos Eduardo Novaes
- Juvenal Ouriço olhou
o cartaz da porta: “Escolinha A Toca da Raposa”. Entrou , sentou-se e alisando
seus vastos bigodes ficou aguardando diminuir o movimento da secretaria. Quando
a última mãe de aluno retirou-se, Juvenal levantou-se e dirigiu-se à
secretária:
- Por obséquio, eu
desejava fazer uma matrícula.
- Pois não – disse a
moça, apanhando uma ficha de matrícula – como é o nome do seu filho?
- Não. Não é para o
meu filho.
- Não? Pra quem é
então? Seu sobrinho?
- Não senhora. É pra
mim mesmo.
- O senhor? Mas aqui
nós só temos maternal, jardim, alfabetização, essas coisas. É uma escolinha de
primeiro grau.
- Eu sei – respondeu
Juvenal muito sério – eu vim me matricular no jardim-de-infância.
- Meio assustada a
moça perguntou se Juvenal tinha certificado de transferência de outra escola.
Como Juvenal dissesse que sua última transferência em escola primária foi em
1948, a secretária afirmou que seria preciso fazer um teste “para saber em
qual jardim colocá-lo”. Distraída, preenchendo a ficha indagou: “Tem mais de seis
anos?”
- Seis anos o quê? –
perguntou Juvenal. – De casado? De formado?
- A secretária
apressou em dizer que a pergunta era mera formalidade porque “de acordo com a
lei, se o senhor tiver mais de seis anos de idade já poderá ser alfabetizado”.
Juvenal declarou que não estava interessado em ser alfabetizado. Ficou decidido
então que iria para o terceiro grau do jardim-de-infância. A moça pediu-lhe os
documentos: certidão de nascimento, atestado de vacina antivaríola, atestado
audio-métrico e três retratos três por quatro.
- Retrato recente? –
perguntou Juvenal – ou de quando eu tinha cinco anos?
A secretária informou
o preço da anuidade, deu o modelo do uniforme e forneceu a relação do material
escolar. Juvenal leu com atenção a longa lista e observou:
- Esse material aqui é
até pro dia do vestibular?
- Não senhor. É só
para esse ano. O senhor vai querer o ônibus?
- Não obrigado –
respondeu Juvenal – eu tenho carro.
Juvenal saiu e
enquanto se dirigia ao banco para levantar o empréstimo que lhe permitisse fazer
as compras que a escola pedia, pensou que se John Kennedy fosse vivo certamente
diria que “o preço da educação é o eterno endividamento”. Na papelaria, depois
de brigar mais do que no dia em que foi atrás dos ingressos para o desfile das
escolas de samba, Juvenal finalmente conseguiu comprar tudo. Já na casa de
uniformes, Juvenal só teve dificuldades de arranjar uma calça curta e um
avental para seu tamanho. Ao seu lado, uma senhora pedia o uniforme da escola
Gruta do Leão.
- A senhora –
perguntou o vendedor – quer completo?
- É sim – disse ela -,
completo, com camisa, calça, gravata, meias e sapatos. Quanto é?
- Quatrocentos
cruzeiros.
- Quatrocentos
cruzeiros? – gritou ela, remexendo o dinheiro na bolsa. – Então me dá só as
meias.
- Tudo um absurdo – exclamou
ela -, o custo de vida está pela hora da morte.
- É verdade –
completou Juvenal -, e o custo das aulas está pela hora do recreio.
- No encerramento do
primeiro dia de aulas, Juvenal despediu-se dos coleguinhas e, quando ia saindo,
tia Lúcia não conseguiu esconder a sua curiosidade e perguntou: “O que o senhor
está fazendo aqui na escola? O senhor já não sabe de tudo isso?”
- Sei, mas meus filhos
não sabem.
- E o senhor tem
filhos?
- Tenho, cinco,
pequenos.
- E por que não os
coloca na escola?
- Porque eu teria que
abrir falência. Achei que seria melhor assim: ao invés de mandá-los, eu venho
e à noite quando chego em casa eu conto pra eles tudo o que aprendi.
- E dá resultado?
- Pode não dar. Mas
sai muito mais barato.